VI – Na encruzilhada do Antropoceno (2019)

No cenário emergente de aguçamento intensivo da crise socioecológica, marcado pela conjunção de curvas exponenciais de comprometimento das macrorregulações planetárias, vamos ter que reaprender a habitar a Terra a partir de uma nova representação da condição humana, agora entendida como uma totalidade bio-psico-social complexa e capaz de favorecer uma reavaliação em profundidade das estratégias de envolvimento em espaços de planejamento, gestão e formação exercitadas desde a época da Conferência de Estocolmo (BONNEUIL; FRESSOZ, 2013; BONNEUIL, 2015; FEDERAU, 2017; STENGERS, 2009; STERLING, 2010; BOURG, 2018). Esta conclusão apoia-se na constatação de que a resiliência do processo de globalização guiado pelo mercado vem colocando em xeque o potencial transformador dessas estratégias, exigindo-nos uma releitura crítica dos trágicos impasses assim gerados e a construção de uma abordagem ecopolítica ressignificada (GANCILLE, 2019). Cabe-nos caracterizá-la com lucidez crescente, evitando as oscilações estéreis entre os extremos do pessimismo e do otimismo no compartilhamento das novas evidências de distúrbios irreversíveis no metabolismo do Sistema-Terra. Dessa forma, acreditamos que a pesquisa de um novo instrumental ecopedagógico deverá merecer uma atenção especial do nosso coletivo nos próximos tempos.

Na concepção originária de uma educação para o ecodesenvolvimento cultivada nos anos 1980 (sobretudo nos países do Sul), buscava-se reaproximar os espaços da economia e da ética por meio de uma reavaliação em profundidade das limitações dos indicadores usuais de eficiência econômica avessos a uma abordagem ecológica e à superação efetiva das tradicionais assimetrias Norte-Sul. Vista desta perspectiva, a gestão das relações das comunidades locais com o seu patrimônio natural e cultural poderia vir a se transformar num processo de aprendizagem social permanente em espaços públicos voltados prioritariamente ao desenho de novas estratégias ao mesmo tempo endógenas, socialmente includentes e ecologicamente prudentes de desenvolvimento (DAG HAMMARSKJÖLD FOUNDATION, 1975; SACHS, 2007; VIEIRA; BERKES; SEIXAS, 2005; VIEIRA, 2016).

A partir da década de 1980, esta concepção passou a coexistir com o desenvolvimento de duas outras importantes contribuições: o enfoque de educação relativa ao meio ambiente e à ecocidadania, gestado na Universidade do Québec em Montréal por iniciativa de Lucie Sauvé (1996); e o enfoque de ecoformação transdisciplinar, a partir da criação de um coletivo de pesquisadores coordenado por Gaston Pineau (2011) na Universidade de Tours, na França. O debate sobre o tema adquiriu novos contornos a partir da Cúpula da Terra em 1992, mas sem conseguir quebrar a hegemonia de uma concepção ecopedagógica que permanece, ainda hoje, atrelada aos cânones do assim chamado “paradigma econômico” (RIST, 2007). Nessas contribuições, o neologismo ecoformação passou a exprimir a necessidade de se articular organicamente micro e macro-aprendizagens no espaço estratégico de transações vitais ligando, desligando, religando os organismos aos seus ambientes (PINEAU, 2001).

Continuamos a pensar que seria equivocado pressupor que esta nova abordagem ecopedagógica poderia ser integrada às propostas tradicionais de educação ambiental ou de suas variações atreladas ao conceito dedesenvolvimento sustentável. Pois de forma inovadora, ela está alimentando hoje em dia a consolidação de um ambicioso projeto de desenvolvimento humano integral – ou de antropoformação –, em busca de uma síntese dialética de três esferas interdependentes: (i) a esfera da relação da pessoa consigo mesma, onde se constrói um novo senso de interdependência e impermanência; (ii) a esfera das relações interpessoais, onde se constrói um novo senso de alteridade, ou do respeito às diferenças; e (iii) a esfera da relação com o hábitat global compartilhado com todos os seres vivos. Deste ponto de vista, as relações que mantemos com tudo aquilo que nos cerca passam a ser percebidas e vivenciadas em suas configurações instáveis, impermanentes e enigmáticas, ativando a nossa disposição de explorá-las e ressignificá-las com novas lentes (MORIN; KERN, 2000; PINEAU, 1992, 2005; PAUL; PINEAU, 2005; COTTEREAU, 2001; SAUVÉ, 2017; VIEIRA, 2016).

Trata-se assim de novo modelo ecopedagógico tripolar, sem dúvida muito mais complexo e abrangente do que o campo das instituições educacionais (formais e informais) que conhecemos. Em nossa programação para os próximos tempos, nós o caracterizamos como um dos pilares essenciais de um projeto civilizador “possível, mas improvável” [2], que estaria embasado numa ontologia não dual e numa ética de corte ecocêntrico-transdisciplinar (ECKERSLEY, 1992; DOBSON; ECKERSLEY, 2006; STERLING, 2010). Mais precisamente, no prolongamento da tradição construtivista, agora enriquecida pelos avanços obtidos no campo da biologia do conhecimento, esta nova concepção de corte sistêmico-complexo aponta no sentido da dissolução gradual da fratura epistemológica que gera a impressão de que o “interior” e o “exterior”, o “eu” e o “mundo” atuam separadamente na formação das nossas estratégias existenciais. Na medida em que essas mutações perceptivas, cognitivas e comportamentais colidem frontalmente com o imaginário subjacente à cultura termo-industrial, sua efetivação deverá pressupor o aprendizado de um know how ético especial, a ser conquistado num nível superior de reflexividade. As implicações dessas hipóteses tendo em vista a reconfiguração das formas de racionalidade estratégica que se tornaram hegemônicas na modernidade tardia apenas começam a ser percebidas, dentro e fora das nossas universidades (TREMBLAY; VIEIRA, 2011). Elas desvelam assim um novo e desafiante patamar de atuação do NMD. Uma das mais transgressivas diz respeito a um novo conceito de saúde ecossistêmica, visto como impulsionador de um novo projeto civilizatório (VIEIRA; GASPARINI, 2018; VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993; VARELA, 1996, 2017; SEMAL, 2019).

 

[2] Na formulação dialógica proposta por Edgar Morin.

 

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