III – Rumo à gestão patrimonial de recursos naturais renováveis na zona costeira (1997-1999)

Os objetivos específicos fixados para esta nova etapa de funcionamento do GPE, que passou a ser denominado Núcleo Transdisciplinar de Meio Ambiente e Desenvolvimento / NMD, foram os seguintes:

(1) estimular e coordenar a realização de atividades de ensino e pesquisa (básica e aplicada) em três áreas de concentração: epistemologia das ciências ambientais, gestão de recursos naturais renováveis e educação para o ecodesenvolvimento;

(2) organizar e implementar um programa regular de eventos científicos (seminários internos e simpósios de escopo local, regional, nacional e internacional) e prestação de assessoria técnica científica para instituições governamentais e não-governamentais; e, finalmente,

(3) intensificar as ações em curso, desde a época da Cúpula da Terra, no sentido da organização e difusão de material didático-pedagógico atualizado, no âmbito da recém-criada Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Ecologia e Desenvolvimento (APED).

Em caráter prioritário, foi deflagrado um novo programa centrado na temática da gestão integrada e participativa de recursos naturais renováveis em zonas costeiras do Sul do Brasil. Além disso, a equipe continuou envolvida na organização de cursos de capacitação em educação para o ecodesenvolvimento para professores vinculados à rede pública de ensino fundamental em diversos municípios catarinenses.

Após a criação do Curso de Doutorado em Sociologia Política no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC, foram introduzidas novas disciplinas formativas para os alunos interessados em se integrar à linha de pesquisa em Desenvolvimento e Meio Ambiente Rural e Urbano, a saber: (i) Epistemologia das ciências ambientais, (ii) Meio ambiente & desenvolvimento e (iii) Gestão comunitária de recursos naturais renováveis.

Nesse período, o NMD-UFSC consolidou-se gradualmente como um dos poucos grupos de pesquisa e ensino vinculados ao CNPq interessados na investigação dos fundamentos epistemológicos de um novo campo de pesquisa-ação-formação psicossocioecológica. As parcerias que vinham sendo mantidas com várias equipes de ponta no exterior, visando o aprofundamento progressivo dessa linha de investigação, foram então ampliadas e aprofundadas: na França, mobilizando pesquisadores vinculados à Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, ao Programme Environnement, Vie et Sociétés do CNRS, ao Institut de Recherche pour le Développement (IRD) e à UNESCO (Division des Sciences Ecologiques Programme de Coopération Sud-Sud); no Canadá, por intermédio dos professores Drs. Pierre Dansereau e Normand Brunet na UQAM; na Índia, em cooperação com os doutores Madhav Gadgil (Centre for Ecological Sciences de Bangalore, Índia) e Shekhar Singh (Institute for Public Administration de Nova Delhi); e no México, com o Dr. Enrique Leff (Rede de Formação Ambiental do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente / PNUMA) e com a doutora Patrícia Moreno-Casasola (Instituto de Ecología de Jalapa, Vera Cruz).

Ainda no que diz respeito às atividades de pesquisa, a segunda área de concentração do Núcleo foi reconfigurada tendo em vista uma focalização mais intensa na experimentação com metodologias de avaliação participativa de ecossistemas e na elaboração cada vez mais rigorosa do modelo de análise de modos de apropriação e sistemas de gestão patrimonial.  Deste novo ângulo de análise, a compreensão da gênese e da dinâmica de conflitos socioecológicos passa pela análise da maneira pela qual recursos comuns (ou “Commons”) são apropriados e geridos. Entram nesta categoria, dentre outros, as florestas naturais, as águas continentais e marinhas, as zonas costeiras, a atmosfera, a fauna selvagem (inclusive os recursos haliêuticos) e a biodiversidade. Pois as evidências de sua existência desafiavam (e continuam desafiando) o funcionamento dos mecanismos usuais de alocação de bens e serviços derivados dos enfoques dominantes no campo da economia dos recursos naturais e do meio ambiente (MONTGOLFIER; NATALI, 1987; OST, 1995; VIEIRA; WEBER, 2000).

Segundo o enfoque neoclássico, por exemplo, os recursos de natureza transapropriativa podem ser considerados como passíveis de regulação efetiva através de diferentes instrumentos de política: mecanismos usuais de mercado, emissão de normas de qualidade e licenças negociáveis de acesso, de uso ou mesmo de poluição; criação de sistemas de taxas visando induzir efeitos dissuasivos; estímulos financeiros, etc. Todavia, a criação e a legitimação de técnicas de avaliação monetária do valor do patrimônio natural esbarram em obstáculos teóricos, metodológicos e ético-políticos extremamente complexos. As propostas de solução continuam, ainda hoje, mercadas pelo peso das incertezas e das intermináveis controvérsias dentro e fora das comunidades científicas. Em outras palavras, o paradigma do mercado competitivo “perfeito” costuma ser utilizado como ponto de referência para a definição de estratégias de intervenção, condicionando uma representação do meio ambiente em termos de “estoques” de recursos naturais a serem explorados segundo critérios de “otimização” coerentes com o paradigma de racionalidade econômica predominante no imaginário antropocêntrico do capitalismo neoliberal.

Na esteira das várias linhas de argumentação que tentam demonstrar a inviabilidade congênita dessas tentativas de enfrentamento reducionista da crise socioecológica, a chamada abordagem de gestão patrimonial passou a ocupar um lugar de destaque nas pesquisas e discussões promovidas pelo NMD. Um volume cada vez maior de literatura técnica gerada em instituições francesas, canadenses e indianas mencionadas acima passou a ser objeto de estudo intensivo, alimentando a dinâmica de implementação de vários projetos-piloto em Florianópolis e no litoral sul do estado de Santa Catarina (YAURI; RAUD, 1998). O uso da noção de patrimônio natural alimentava o tratamento da noção de uma herança a ser transmitida às próximas gerações com base num sistema alternativo de valores, acompanhando o processo de elaboração progressiva do enfoque “clássico” de ecodesenvolvimento. A ênfase incidia na possibilidade (e na necessidade) de se inserir a análise econômica de opções de internalização de externalidades no contexto de uma reflexão sistêmica rigorosa, refletindo a preocupação dos primeiros intérpretes do enfoque de ecodesenvolvimento quanto à necessidade de um enfrentamento simultâneo dos desafios ligados às dimensões da repartição equitativa da riqueza, da preservação do pluralismo cultural e da reprodução no longo prazo do meio ambiente biofísico.

A proposta alternativa que passou a ser assumida pelo NMD, agora integrado a uma rede internacional de pesquisadores interessados na problemática da gestão compartilhada de recursos comuns, fundamentava-se num novo princípio de inteligibilidade que mobiliza diferentes tradições de pensamento em socioeconomia dos recursos naturais e do meio ambiente, antropologia econômica e jurídica, sociologia política, sociologia ambiental, antropologia ecológica, ecologia humana, ciências cognitivas e direito ambiental. Consolidou-se então na agenda do NMD a utilização de um modelo de análise transdisciplinar-sistêmica capaz de articular coerentemente um leque de variáveis interdependentes, que inclui (i) as representações diferenciadas e os objetivos efetivamente perseguidos pelos atores envolvidos; (ii) avaliações cada vez mais precisas (e participativas) das dinâmicas ecossistêmicas, com base no conceito de resiliência; (iii) as relações de cooperação e conflito entre os atores envolvidos em sistemas de gestão de recursos comuns; (iv) procedimentos inovadores de avaliação do patrimônio natural e cultural; (v) avaliações participativas de impactos socioecológicos das dinâmicas de desenvolvimento que incorporam a história ecológica das regiões investigadas; e (vi) avaliações prospectivas das condições de viabilidade no longo prazo de estratégias alternativas de ecodesenvolvimento, definidas mediante a participação – a mais ampla e representativa possível – das forças vivas das comunidades envolvidas nos processos de enfrentamento de problemas socioambientais.

A revisão da literatura disponível e a consulta a experts sugeriam, naquela época, que a problemática dos modos de apropriação de recursos de uso comum permanecia ainda muito incipiente e marginal no campo das ciências humanas e sociais no Brasil. O consenso entre os estudiosos que interagiam com a equipe do NMD estendia-se também ao reconhecimento de que existe um espectro bastante diferenciado de regimes de apropriação nas sociedades contemporâneas, estando os limites extremos balizados pelas figuras do livre acesso e da apropriação privada, e passando pelo regime de propriedade estatal. Desde meados dos anos 1980, inúmeras experiências de gestão comunitária de recursos comuns, empiricamente observáveis ou reconstruídas por meio da análise histórica, passaram a ser rastreadas e incorporadas ao acervo de contribuições consideradas academicamente relevantes (BERKES, 1989, 1999; BERKES; FOLKE, 1998; BROMLEY, 1992; OSTROM, 1989; VIEIRA; WEBER, 2000; DIEGUES, 2000; HANNA et al.,1996; SINGH et al.,2000).

Os dados coletados reforçavam a hipótese segundo a qual os processos de utilização predatória de recursos naturais podem ser – geralmente – correlacionados à tendência de dissolução progressiva daqueles arranjos institucionais consolidados no nível comunitário que, no passado, mostraram-se capazes de preservar padrões social e ecologicamente viáveis de interação com o meio ambiente biofísico A literatura consultada em diferentes países – nos dois hemisférios – convergia no sentido da crítica ao pressuposto de que a solução dos atuais problemas de degradação socioambiental repousaria predominantemente na privatização da base de recursos comuns e/ou na ação estatal baseada na adoção de práticas regulatórias com perfil tecnocrático, em detrimento do potencial contido em sistemas mistos, capazes de abrigar novos arranjos institucionais para uma gestão compartilhada de recursos comuns.

Finalmente, na área de concentração em educação para o ecodesenvolvimento foram organizados cursos de capacitação para professores a rede pública de ensino básico em diferentes municípios da zona costeira do estado de Santa Catarina. Ao mesmo tempo, o NMD passou a funcionar, desde 1997, como Escritório Regional Sul da APED, oferecendo um espaço permanente de capacitação e integração de pessoas, grupos e instituições interessadas na criação em rede de Agendas 21 locais. No rol de suas atividades mais importantes foram incluídas a expansão da rede de intercâmbio via Internet, a realização de eventos científicos regulares, em escala local, regional, nacional e internacional; e a dinamização permanente da série editorial Desenvolvimento, Meio ambiente e Sociedade. 

Em síntese, os avanços conquistados durante o período 1997-1999 conduziram o NMD a um patamar qualitativamente superior de fortalecimento institucional e integração à rede de pesquisadores trabalhando com temas similares, dentro e fora do ambiente acadêmico. A pesquisa de estratégias realistas de intervenção no nível do desenvolvimento local no período pós-CNUMAD 92 colocou a equipe frente a um desafio necessariamente complexo, marcado por incertezas científicas, pelo timing via de regra lento dos processos de mudança sociocultural e pelo déficit crônicode visibilidade e legitimidade política da proposta de ecodesenvolvimento no Brasil. O CNPq manteve o seu apoio durante todo o período, concedendo bolsas de produtividade, de recém-doutor e de iniciação científica. Várias dissertações de mestrado e teses de doutorado foram desenvolvidas no âmbito do Núcleo, focalizando sobretudo a problemática da gestão patrimonial de recursos de uso comum no litoral de Santa Catarina.

No rol dos grandes eixos de integração a programas internacionais emergentes de pesquisa e formação gestados neste período podemos mencionar os seguintes:

Participação no Programa “Millennium Assessment of the State of World’s Ecosystems”

Este programa visava organizar uma base de informações atualizadas sobre a situação atual, as tendências históricas e as pressões biológicas e socioeconômicas que têm sido exercidas sobre os ecossistemas em escala global, em termos de sua capacidade de fornecer bens e serviços importantes para o desenvolvimento humano sustentável. Em outras palavras, pensava-se iniciar um trabalho de avaliação da provável capacidade futura dos ecossistemas para continuarem proporcionando bens e serviços ambientais, melhorando a capacidade de monitoramento da resiliência dos mesmos e examinando os fundamentos científicos das diversas tecnologias, políticas e práticas que estão sendo consideradas como instrumentos de gestão de ecossistemas em escala global. A tônica deveria portanto recair no refinamento de novas estratégias de diagnóstico participativo, privilegiando as dinâmicas socioambientais no nível local ou comunitário e tentando gerar um padrão mais confiável de articulação dessas avaliações locais com avaliações realizadas nos níveis superiores de complexidade (sub-regional, regional, nacional, internacional e global). No rol dos patrocinadores desta iniciativa estavam incluídos, entre outros, o World Resources Institute, o Global Environmental Facility (GEF), a Swedish International Development Agency (SIDA), o PNUD, o PNUMA, a United Nations Foundation e o World Bank.

Este esforço de avaliação – ao mesmo tempo integrativa e compartilhada – inspirou-se numa proposta metodológica que vinha sendo desenvolvida pelo Centre for Ecological Sciences, em Bangalore, Índia, sob o rótulo de People’s Biodiversity Registers (GADGIL; GUHA, 1992; GADGIL, 1998, 1999). Dele foram desdobrados projetos-piloto comparativos a serem conduzidos no litoral sul do estado de Santa Catarina à luz do Programa de Agendas 21 Locais.

Coordenação de um Programa Latinoamericano de Pesquisas sobre Gestão Participativa de Ecossistemas Litorâneos

Como parte do follow-up de um Encontro do Programa de Cooperação Sul-Sul para o Ecodesenvolvimento da UNESCO, realizado no México em 1999, centrado na diretriz de conservação da diversidade biológica e cultural mediante experimentações em rede com o enfoque de ecodesenvolvimento, no contexto da Rede Mundial de Reservas de Biosfera, o coordenador do NMD foi indicado como organizador – em parceria com a Dra. Patrícia Moreno (Instituto de Ecología, México) do Grupo de Trabalho voltado à constituição de um novo Programa de Gestão de Ecossistemas Litorâneos para a América Latina e o Caribe.

Co-organização de um curso de capacitação à distância sobre gestão de zonas costeiras, no âmbito do Programa de Cooperação Sul-Sul para o Ecodesenvolvimento da UNESCO

Ainda como parte do follow-up do Encontro Anual do Programa de Cooperação Sul-Sul, Paulo Freire Vieira e Eduard Müller (Reitor da Universidad para la Cooperación Internacional da Costa Rica) foram encarregados da elaboração (em 1999) do protótipo de um curso à distância de educação para o ecodesenvolvimento. Os termos de referência foram definidos num seminário-workshop realizado em San José no mês de setembro de 1999, com financiamento da UNESCO. Durante o evento foram reunidas informações, propostas e parcerias individuais e institucionais que nos permitiram alcançar uma configuração preliminar do novo programa, voltado para a criação de estratégias coordenadas de ecodesenvolvimento em zonas costeiras de países latinoamericanos e caribenhos. O programa contemplava a oferta de cursos moduláveis (em termos de complexidade de conteúdos e de carga-horária) para vários tipos de usuários: estudantes e professores universitários (cursos de especialização e mestrado), técnicos do setor público, professores da rede de ensino básico, gestores de áreas de conservação e agentes governamentais.