V – A Zona Costeira Catarinense assumida como uma Região-laboratório de Ecodesenvolvimento Territorial (2004-2018)
O período seguinte foi polarizado pela criação de um projeto interinstitucional de mapeamento exploratório e comparativo de experiências de ecodesenvolvimento territorial em regiões selecionadas dos estados de Santa Catarina e da Paraíba. Esta iniciativa mobilizou uma equipe franco-brasileira de pesquisa e contou com o apoio do Acordo Capes-Cofecub, da Fundação de Amparo à Pesquisa de Santa Catarina (FAPESC) e do CNPq. As análises empreendidas favoreceram uma compreensão mais rigorosa da racionalidade estratégica embutida nos sistemas de ação de representantes dos setores governamental, não-governamental e privado nas dinâmicas territoriais e nas condições de articulação dos espaços locais de desenvolvimento aos espaços superiores de planejamento e gestão socioecológica nos dois estados. Elas permitiram também a delimitação de um conjunto de fatores favoráveis (trunfos e oportunidades) e de obstáculos (fragilidades e ameaças) à dinamização coordenada das experiências de planejamento e implementação dessas dinâmicas (ainda muito embrionárias e fragmentadas naquela época). Avançamos finalmente na especificação dos espaços de manobra tendo em vista o fortalecimento institucional progressivo dessas iniciativas, incluindo-se nisto a integração progressiva de núcleos de pesquisa inter e transdisciplinar e a formação permanente de agentes de ecodesenvolvimento territorial.
A etapa preliminar de coleta de dados foi dedicada, por um lado, à pesquisa bibliográfica e documental sobre a problemática de base, bem como à realização de entrevistas semi-estruturadas com responsáveis por programas e projetos de desenvolvimento local em instituições consideradas de importância estratégica nessa área – a exemplo de associações intermunicipais, o SEBRAE, organizações civis, empresas públicas de pesquisa e extensão rural e fundações. Além disso, a equipe efetuou um levantamento, junto às prefeituras municipais e às associações de municípios, de potencialidades subaproveitadas ou mesmo desconsideradas, além de planos e ações setoriais sintonizadas com a busca de mobilização endógena de recursos territoriais (materiais e culturais) visando o combate à pobreza, à exclusão social e à degradação do patrimônio natural – a exemplo da organização de consórcios públicos e privados, de festas e feiras tradicionais e de iniciativas de valorização de recursos naturais e paisagísticos, do patrimônio histórico e gastronômico, e de produtos artesanais típicos.
Três regiões do estado de Santa Catarina foram selecionadas como promissoras com base em critérios essencialmente pragmáticos, a saber: o Vale do Rio Itajaí, o Planalto Serrano e a Zona Costeira Centro-Sul. Por sua vez, no estado da Paraíba o esforço de pesquisa foi concentrado na região do Cariri. As operações de pesquisa de campo concentraram-se no registro das trajetórias de desenvolvimento que conduziram à configuração atual das áreas selecionadas, com base em pesquisas documentais e bibliográficas, consultas a bases de dados informatizados e entrevistas semi-estruturadas com atores-chave (SABOURIN et al., 2002; PECQUEUR, 1996; VIEIRA; CAZELLA, 2009). A equipe considerava que a utilização desse instrumento poderia melhorar sensivelmente a busca de compreensão da maneira pela qual as estratégias das diferentes categorias de atores sociais relevantes, os interesses conflitivos ou cooperativos que eles defendem e as lógicas que os animam têm interferido, ao longo do tempo, no cenário do desenvolvimento local e na qualidade de vida das populações investigadas.
Reconhecemos ao mesmo tempo a necessidade de ampliar o leque de instrumentos de análise explicativa geralmente utilizados em estudos de caso de corte tecnocrático, concedendo uma ênfase especial ao desvelamento das estruturas de dominação (i) que respondem pela dependência crônica das comunidades locais relativamente a instituições externas, e (ii) que controlam a utilização dos recursos ambientais, os circuitos de comercialização e a persistência de estratégias socialmente excludentes e ecologicamente destrutivas de desenvolvimento no nível local. Uma consideração cada vez mais rigorosa das lógicas específicas de ação coletiva de representantes da Sociedade Civil, do Mercado e do Estado nas dinâmicas de ecodesenvolvimento territorial deveria responder assim pela identificação rigorosa do campo próprio de atividades e de responsabilidades de cada um deles, bem como pela apreensão exploratória das modalidades possíveis de articulação – cooperativas ou conflituosas – entre os mesmos (RAUD, 1996; 1997).
Ao mesmo tempo, pensávamos que uma análise de conexões institucionais transescalares poderia em princípio nos revelar, com mais detalhes e maior confiabilidade, (i) a existência de espaços de gestão ao mesmo tempo integrada e compartilhada das dinâmicas territoriais, onde prevalece o princípio de co-responsabilidade; (ii) as dinâmica de constituição e funcionamento das organizações civis e, finalmente, (iii) os impactos reais das políticas públicas de fomento que têm sido implementadas nas áreas estudadas desde a época da realização da Cúpula da Terra. Uma atenção especial passou então a ser concedida ao desvelamento da maneira pela qual os grupos sociais agem de forma conflitiva, a partir do jogo de estruturas objetivas e de sistemas de disposições duráveis, adquiridas e interiorizadas, que respondem pela reprodução indefinida, acrítica e automatizada de relações de manipulação ideológica, de força e de dominação social veladas – ou, nos termos eloquentes de Johan Galtung (1978; 1996), de violência estrutural – no campo da gestão descentralizada de recursos comuns (ILLICH, 1973; LABORIT, 1974).
Dentre os fatores favoráveis a um padrão de intervenção inspirado nos princípios do ecodesenvolvimento territorial, a equipe levou em conta aqueles que caracterizam o potencial existente no nível local e aqueles que dizem respeito à inserção seletiva das inovações associadas à dinamização do tecido territorial em escalas mais amplas de regulação político-econômica. Mais especificamente, o plano de coleta de dados contemplou o registro (i) da base de recursos materiais e humanos locais (o nível educacional e de formação contínua das populações, os saberes técnicos e o nível de empreendedorismo coletivo, o patrimônio natural e cultural e as poupanças locais), (ii) das capacidades locais de auto-organização das comunidades (o perfil de estruturação e funcionamento das instituições públicas locais; as estratégias de reforço das relações de solidariedade e de integração social; as estruturas de programação e as ações coletivas implementadas localmente para estimular e coordenar as estratégias de desenvolvimento; as normas jurídicas e culturais que estão favorecendo um controle local dos usos do patrimônio natural etc.), (iii) das características do tecido socioeconômico gerado no contexto local (sistemas produtivos locais que têm respondido, de maneira convincente, às exigências de valorização da especialização flexível e de uma estratégia de industrialização difusa; circuitos econômicos setoriais baseados nos princípios da economia solidária; presença de aglomerações setoriais locais etc.), e (iv) das condições de inserção das dinâmicas locais no contexto regional (entre outras, as condições de acesso dos agentes governamentais aos centros superiores de tomada de decisão, em termos políticos e econômicos; a dinâmica dos circuitos de comercialização; a existência de sistemas de informação sobre inovações técnicas e sobre oportunidades a serem exploradas fora do contexto local; as oportunidades de trabalho sazonal existentes nos espaços externos à área selecionada, viabilizando a formação de renda complementar aos salários; o perfil de distribuição de renda; e as políticas de apoio ao desenvolvimento local formuladas por instituições em níveis superiores).
Por outro lado, no rol dos possíveis bloqueios foram incluídos: (i) a ausência de recursos materiais e financeiros; (ii) o baixo nível de formação geral e profissional dos atores sociais envolvidos; (iii) a força de inércia dos hábitos de dependência herdados do passado; (iv) a centralização dos recursos e das decisões públicas promovida pelo aparelho de Estado; (v) o peso dominante das empresas cujas estratégias, definidas em função de demandas nacionais ou internacionais, prejudicam a revitalização do tecido socioeconômico local; (vi) as barreiras setoriais que decorrem de uma excessiva especialização das atividades produtivas ou da modalidade tradicional de organização tecno-burocrática e verticalizada das administrações públicas; (vii) a desarticulação e o paralelismo das ações dos setores governamental, privado e da sociedade civil organizada; e (viii) o desconhecimento dos princípios do desenvolvimento territorial sustentável por parte dos atores sociais relevantes envolvidos nos sistemas de planejamento e gestão – em todos os níveis.
Ainda à luz deste roteiro, a síntese dos dados coletados, a hierarquização dos problemas estruturais e o desenho de soluções viáveis de um ponto de vista estratégico alimentaram a elaboração de cenários prospectivos, considerados úteis ao desenho de estratégias de desenvolvimento territorial sustentável nos próximos tempos. Essas operações foram replanejadas para a realização da terceira etapa deste projeto, voltada para o fortalecimento e a integração progressiva das estratégias selecionadas, para o aperfeiçoamento de um dispositivo de avaliação e monitoramento contínuo do processo e, finalmente, para a organização de programas especiais de capacitação e fortalecimento institucional. Neste último item, tratava-se de fomentar os vínculos de sinergia necessários para nutrir, melhorar e utilizar as habilidades e capacidades de pessoas e instituições em todos os níveis (ZAOUAL, 2008; CERDAN et al., 2011)
Em síntese, corroboramos a hipótese segundo a qual um modelo de análise comensurado às insuficiências da pesquisa contemporânea sobre o nexo desenvolvimento territorial e meio ambiente não deveria ser confundido com a adoção de fórmulas-feitas. Seria mais adequado caracterizá-lo, antes, como um procedimento pragmático e flexível de aprender a fazer fazendo, mas internalizando a norma da vigilância epistemológica tão cara a Pierre Bourdieu (1968). Como se sabe, ele nos recomendava que essa atitude deveria ser aplicada à ciência em processo de construção, e não assumida de forma abstrata apenas na fase de elaboração dos projetos.
Outro aprendizado importante decorreu do teste de uma nova maneira de mapear possíveis unidades de análise. Diante da fragilidade operacional e do timing excessivamente lento das ações governamentais de apoio à criação de Agendas 21 locais, o esforço de coletar evidências de embriões de desenvolvimento territorial sustentável parecia nos oferecer uma via alternativa para se deflagrar e integrar novos estudos de caso nas assim chamadas regiões-laboratório de ecodesenvolvimento territorial (LÉVÊQUE et al., 2000). No processo de análise de trajetórias de desenvolvimento, a reconstrução dos modos de apropriação e gestão de recursos naturais de uso comum utilizados no passado e daqueles que configuram o cenário de desenvolvimento atual nos territórios selecionados pareciam oferecer também novos insights para a condução dos trabalhos da equipe. Nos termos de um dos principais arquitetos da noção de sistema de gestão patrimonial, este enfoque pressupunha que “a apreensão da realidade por um ator não atinge esta realidade na sua essência, mas decorre deste ator e da relação singular que ele estabelece com a realidade. Torna-se assim imprescindível demonstrar de que maneira o ator representa para si mesmo (i) a qualidade local do meio e a realidade da dimensão de proximidade sobre a qual ele exerce uma ação direta, agindo nesse sentido enquanto um micro-ator; (ii) a qualidade global que emerge da unidade natural e humana que esses atores em sistemas-de-ação contribuem para determinar no nível do sistema socioambiental envolvido; ali, o ator surge então como um macro-ator dos diferentes sistemas de ação dos quais ele faz parte; e finalmente (iii) a interação mediante a qual o ator se torna, ao mesmo tempo, micro e macro-ator. Ele torna-se, com efeito, ator de uma interação mais ou menos marcada entre os níveis de organização do sistema de ação. E é no cerne dessa interação que se corporifica a consistência do sistema de ação, ou seja, seu funcionamento efetivo” (OLLAGNON, 2000, p. 177).
Aqui, o ponto essencial a ser retido diz respeito à percepção da necessidade de avançarmos – de forma cada vez melhor coordenada – na condução de um processo de reelaboração de uma teoria sistêmica das ações coletivas, face aos dilemas criados pelo agravamento da crise socioecológica global. Acreditávamos que as experimentações criativas com novos modelos sistêmicos de análise orientada para a ação de planejamento e gestão territorial poderiam nos ajudar a compreender cada vez melhor (i) os diferentes padrões de percepção e representação das dinâmicas de desenvolvimento por parte dos atores sociais envolvidos; (ii) a singularidade das estratégias locais de subsistência ou, nos termos sugeridos por Ignacy Sachs (2002), da complexidade das economias reais identificável nas práticas cotidianas das comunidades rurais; (iii) as complexas inter-relações entre inovações científico-tecnológicas, riscos socioambientais e novas opções de regulação econômica; (iii) as dinâmicas conflitivas e cooperativas que caracterizam o jogo de atores (governos, empresas e associações civis) envolvidos nos diversos modos de apropriação e gestão de recursos naturais de uso comum; e (iv) os condicionantes bioecológicos e socioculturais de mudanças significativas de atitude e comportamento condizentes com a instituição de novos estilos de vida, mais solidários do ponto de vista social e mais prudentes do ponto de vista ecológico.
Finalmente, e por implicação, a evolução do trabalho dessas pesquisas no cenário da zona costeira de Santa Catarina confirmou a necessidade de uma utilização menos “intuitiva” (e portanto mais criteriosa do ponto de vista teórico e metodológico) da chamada prospectiva territorial. Como foiressaltado acima, este procedimento de análise não se limita à elaboração de cenários tendenciais. Pois incorpora também a realização de estudos de viabilidade dos mesmos. Delamarre (2002, p. 4-5) percebeu as implicações pedagógicas dessa concepção mais ampla, quando admite que “a atribuição de um papel ativo ao debate nas dinâmicas de tomada de decisão pública desvela um potencial de dinamismo, mas também de demanda de novas aprendizagens”. Na opinião deste autor, torna-se imprescindível uma percepção mais nítida dos objetivos operacionais perseguidos pela prospectiva territorial, ajustando-a cada vez melhor à especificidade dos diversos contextos locais e microrregionais. Nesse sentido, podemos pressupor a incorporação de um amplo acervo de práticas participativas, entendidas como um importante vetor de legitimação do procedimento. Ademais, o reconhecimento da importância da esfera econômica deveria avançar paralelamente à integração das visões-de-mundo e dos sistemas de valores que fundamentam as dinâmicas sociais e culturais no cenário territorial. Em suma, trata-se de aprender a manejar de forma cada vez mais competente uma técnica “dinâmica e inventiva de reflexão coletiva, sabendo associar a diversidade de competências presentes sem demagogia, sem confusão de papéis, e favorecendo a estruturação de sistemas de ação local/territorial com a duração suficiente para concretizar um projeto bem definido de intervenção”.
Ainda como parte dessa dinâmica, foi oficializada pelo NMD em 2008 a criação de uma rede universitária de apoio técnico-científico ao Ministério Público Federal, colaborando assim na consolidação de espaços estabilizados de promoção da ecocidadaniano estado e no País. O Observatório do Litoral Catarinensetornou-se um instrumento inovador de promoção do controle social de dinâmicas de desenvolvimento numa biorregião que continua sofrendo – de forma exemplar – os impactos destrutivos da ocupação urbano-industrial e da transferência de tecnologias pouco adaptadas às características socioambientais das comunidades tradicionais de pescadores ali sediadas (DIEGUES, 1987; VIEIRA et al., 1997; VIEIRA, 2001; POLETTE; VIEIRA; SANTOS, 2009).
Uma avaliação atualizada do desempenho do Sistema de Gerenciamento Costeiro, entendido como um dos eixos estratégicos da política ambiental brasileira, indicava na época a persistência de uma série de disfunções que continuam (ainda hoje) comprometendo seriamente a sua legitimidade junto à opinião pública esclarecida. Com base no processamento de dados obtidos por meio de análise documental e questionários encaminhados em 2005 a uma amostra representativa de agentes governamentais, ONGs ambientalistas e pesquisadores, foi possível constatar que sua implementação efetiva nunca foi assumida como prioridade pelo Setor Público – em todos os níveis de organização do nosso sistema federativo (POLETTE; VIEIRA, 2005). A fragmentação institucional constitui, ainda hoje, a tônica dessa iniciativa, que permanece como um compartimento estanque relativamente às ações desenvolvidas no âmbito dos demais programas governamentais que incidem sobre a zona costeira – a exemplo do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, do Programa Brasileiro de Educação Ambiental, do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar e da Secretaria Especial de Pesca e Aquicultura, dentre outros. Soma-se a isso a carência crônica de apoio financeiro e material, praticamente inviabilizando a atuação das equipes estaduais e municipais. Até o momento, o País não conta com experiências de dinamização efetiva do GERCO nos municípios costeiros; da mesma forma, a estratégia de comunicação social adotada não tem favorecido a participação popular no esforço de gestão. Nesse contexto de flagrante descaso do Setor Público, agravado pelo estágio ainda incipiente do processo de organização da sociedade civil, acabam prevalecendo os interesses dos segmentos sociais comprometidos com um estilo de desenvolvimento social e ecologicamente predatório da zona costeira. Entendida como patrimônio natural e cultural da sociedade brasileira, ela permanece à mercê da dinâmica de ocupação urbana desordenada, induzida pela especulação imobiliária, de um modelo de turismo de massa sazonal e de projetos de dinamização socioeconômica de alto impacto desestruturador de ecossistemas e paisagens.
Na criação do Observatório do Litoral levamos assim em conta a necessidade imperiosa de dinamizar as interfaces que o Ministério Público mantém com os processos participativos previstos no Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC). Na nossa agenda estratégica incluímos portanto (i) a mobilização de núcleos de pesquisa acadêmica e organizações não-governamentais no rastreamento contínuo de casos de violação da legislação ambiental incidente sobre a zona costeira catarinense e na organização de Ações Civis Públicas; (ii) a formação de um banco de dados e para a difusão regular das informações que forem sendo coletadas, mediante relatórios a serem disponibilizados num sítio web; (iii) a integração de núcleos acadêmicos que mantêm linhas de pesquisa sobre gerenciamento integrado e participativo de zonas costeiras no Brasil e no exterior, mediante a criação de uma base conceitual, ideológica e metodológica compartilhada; (iv) o envolvimento de estudantes universitários na elaboração de trabalhos relacionados à temática dos modos de apropriação e gestão da zona costeira; e (v) o apoio a iniciativas de auto-organização comunitária tendo em vista a criação de dinâmicas territorializadas de ecodesenvolvimento.
Ainda em 2010, o NMD vinculou-se ao projeto de Gestão Integrada e Compartilhada de Territórios Marinho-Costeiros, no âmbito do Edital CAPES-Ciências do Mar. Os vários capítulos incluídos nesta coletânea atestam a originalidade e a relevância do trabalho que foi realizado nos cinco anos seguintes – na sequência da reflexão epistemológica mantida no período de 1995 a 2003 sobre o conceito de gestão patrimonial. A partir de múltiplas perspectivas de análise, tornou-se mais transparente a maneira pela qual o esforço de gestão ao mesmo tempo integrada e compartilhada de commons desafia o mainstream da socioeconomia do meio ambiente e dos recursos naturais em escala global. Os desafios (teóricos, metodológicos e éticos) a uma reversão efetiva dessas tendências assumem uma importância primordial no cenário atual de degradação intensiva – e por que não dizer ostensiva e socialmente consentida – do nosso bioma costeiro (DARDOT; LAVAL, 2010).
No período de 2012 a 2018, passamos a mobilizar pesquisadores e ativistas na elaboração de pareceres e laudos técnicos, a partir de demandas específicas encaminhadas tanto pela Procuradoria da República, quanto por organizações civis atuando na porção centro-sul da zona costeira catarinense. Além disso, em seus trabalhos de conclusão de curso, mestrado e doutorado, estudantes vinculados a diferentes áreas de conhecimento passaram a colaborar nos diagnósticos de conflitos gerados pelas modalidades dominantes de apropriação e gestão do patrimônio costeiro. No rol das ações mais recentes do Observatório do Litoral destaca-se a avaliação dos riscos envolvidos num mega-projeto de redelimitação da área reservada ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro (PEST) [1]. Impulsionado por um grupo de proprietários de terras e empresários comprometidos com o modelo dominante de privatização em grande escala do patrimônio costeiro catarinense, a aprovação deste projeto resultou na criação, em regime de urgência, de três novas APAS em seus limites, além de vários Planos Diretores Municipais. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) foi proposta pelo MPF e encontra-se atualmente em fase final de julgamento junto ao Supremo Tribunal Federal.
Contrariando as pesquisas realizadas continuamente na região ao longo de quase meio século, bem como os arranjos institucionais consolidados pela Constituição Federal de 1988, esta iniciativa foi respaldada pela Lei Estadual 14.661 e sancionada – de forma surpreendente – pelo Governo Estadual em 26/03/2009. Este dado revela, de forma emblemática, o peso das dissonâncias cognitivas e do déficit de legitimidade social e política dos diagnósticos socioecológicos compartilhados pela comunidade científica, num momento histórico que está exigindo rupturas paradigmáticas na maneira de pensar a articulação orgânica entre as esferas da pesquisa, da formação e da ação política transformadora
[1] Criado em 1975, trata-se da maior unidade de conservação sediada no estado de Santa Catarina, cobrindo uma área de aproximadamente noventa mil hectares. Abrange nove municípios e concentra a principal reserva de água potável que abastece a capital e os municípios vizinhos.